Verdades, mentiras e o negro na História do Brasil*


Thiago Fragata**
Pergunta para provocar a platéia: “onde você guarda seu racismo?”. Com afirmativa de outra propaganda televisiva darei início a minha intervenção nesse I Fórum Regional sobre a implantação da Lei 10.639/2003: “é preciso rever nossos conceitos”.
Para melhor compreender a preleção intitulada “Verdades, mentiras e o negro na História do Brasil” é preciso rever conceitos arraigados em nossa vida. A tarefa não é fácil. Um dos conceitos que peço atenção é aquilo que entendemos como sendo verdade. Segundo os retóricos da Grécia Antiga, verdade seria tudo aquilo que o orador conseguia fazer o ouvinte acreditar como sendo verdade. Imagine dez oradores perante um público que escuta a verdade de cada um sobre determinado ponto, é possível que um defenda a menos verdade (mentira) e seja convincente. Um ponto a ser destacado: a verdade é a única embora possa ser defendida apenas por um orador, ela é diversa na medida em que todos os oradores acreditam na verdade.
Antes de adentrar a pauta quero expressar outro conceito, o de política. Num sentido mais simples, precisamos entendê-la como sendo o ato de reivindicar melhores condições de vida. A criança que chora faz política, o professor que faz greve é um ser político, o estudante que faz abaixo-assinado é político, dessa forma a política não está concentrada nos representantes do anseio do povo. Retomo a questão da diversidade da verdade para lembrar que embora com discursos opostos é possível que todos estejam com suas verdades. O mote da verdade é uma constante nas tribunas da política brasileira e nas lutas sociais.
Infelizmente, a História do Brasil mostra que a força da política, da economia e da religião veiculou durante séculos uma verdade capciosa, aspeada, hegemônica, sobre a questão do negro, aquele que regou com sangue e suor esse país. Essa verdade europocêntrica (segundo a ótica européia) está presente nos livros didáticos e deve ser revista. Apesar dos avanços observados nos últimos anos no tocante a dívida social para com os segmentos injustiçados a concentração de renda e hegemonia da verdade continuam favorecendo a classe dominante.
DOIS PONTOS PARA REFLEXÃO:
- A verdade sobre a África chegou até nós pela ótica dos europeus, mais especificamente pelos portugueses;
- Como herança cultural de uma sociedade escravista a nossa sociedade atual mantém na essência o conservadorismo do passado, e assim o racismo, por exemplo, faz parte da nossa cultura, está entranhado no cotidiano, em nossas palavras, gestos e ações. O racismo é um eco da sociedade brasileira colonial, uma herança maldita da escravidão.
Sobre algumas questões do livro didático aceno para a falta de informação sobre as grandes civilizações que existiram na África, antes mesmo da presença européia. Por volta do século VII e XIV, existiam os grandes reinos de Gana e Mali, o de Songai resistiu até o século XVIII quando foi extinto pelos europeus.
Perceberam como a civilização africana egípcia figura no livro didático? Não parece estranho como ela aparece desterritorializada, como se não tivesse existido na África, fosse desvinculada do continente negro. Isso não é por acaso, até hoje a comunidade científica européia resiste a idéia da África figurar como berço da humanidade. Quero que vocês atentem o quanto essas verdades permanecem silenciadas. A informação veiculada, cristalizada hoje é que a África é um continente problema, que o negro foi continua um problema na medida em que boa parte da população pobre no Brasil é composta de negros. No entanto, pesquisando a História descobrimos que a miséria da África e os problemas que afligem os afrodescendentes resultaram da exploração mercantil européia em séculos de exploração.
Vejamos como a ótica imposta pela classe dominante, européia, forjou sua verdade sobre o negro: não é novidade para quem estudou o Brasil Colônia que a Igreja Católica portuguesa era uma instituição subordinada ao Estado por isso devia respeito e obediência ao monarca, seguindo o regime do padroado. Assim, as verdades pregadas pelos padres funcionários do governo justificaram a escravidão e outras barbáries da metrópole. Nasceu da própria igreja a idéia de que os negros africanos não tinham alma, eram como animais, por isso poderiam ser escravizados. A própria igreja e muitas ordens religiosas possuíam escravos. Alguns jesuítas, a exemplo do Padre Antônio Vieira, condenavam a escravidão dos índios mas justificavam a necessidade do braço africano para o sucesso da economia colonial.
Outro ponto é a questão da inferioridade do africano moldado pelo discurso científico dos europeus no século XIX. Primeiro a escravidão africana foi legitimada pela religião, no século dezenove a justificativa para a decadência da ex-colônia e imigração dos europeus foi dada pela ciência. E como a abolição da escravidão não teve uma reforma agrária ou qualquer outra ação compensatória aos descendentes dos construtores do país, a abolição tão sonhada por Zumbi dos Palmares, Castro Alves, José do Patrocínio, João Mulungú fez surgir um cinturão de miséria que ainda persiste com a mesma tonalidade: a cor negra.
Por isso é preciso dizer umas verdades em alto e bom tom: essas injustiças têm que ser reparadas com a implementação de políticas públicas, seja através da política de cotas para negros, que bem ou mal tem beneficiado parcela considerável dos pobres afrodescendentes; seja através da Lei 10.639 que desperta a área educacional para contribuição do elemento negro na constituição desse país. Oportuno informar que foi criado na primeira gestão do Governo Lula a Secretaria de Promoção das Políticas Públicas para Igualdade Racial que representou um avanço na defesa das questões afrodescendentes, além da política de cotas que sugiro seja pauta da próxima conferência do Núcleo de Educação da Diversidade e Cidadania (NEDIC-SEED/SE). Quero lembrar da ação do reconhecimento e tombamento de áreas de antigos quilombos, como se deu na comunidade de Mocambo, e Porto da Folha, e Serra da Guia, em Poço Redondo, interior de Sergipe.
No ensejo de rever nossos conceitos, rogo que possamos aprender a conviver com a diversidade. Não é fácil pois vivemos em tempos de grandes contradições; temos um país democrático na sua casca porém intolerante, conservador na essência, na sua formação cultural. Verdade é que somos preconceituosos, vamos pensar no racismo...somos racistas na medida em que nossos atos, gestos e palavras nos revelam assim, certo que é involuntário e perigoso pois desde 1988, ano da última constituição, discriminação racial é crime.
Para finalizar, quero falar aos professores e agentes da educação. Quero lembrar aos educadores do quanto é difícil educar pelo exemplo; do quanto é difícil não reproduzir o que aprendemos na experiência social. Nossa escola existiu no século XX... gente, estou falando no século XXI, outro contexto! Recordo a minha filha que não cansa de repetir “Painho, você é um homem do século XX!”. Na sala de aula e diversidade é grande (negros, índios, homossexuais, diferentes credos religiosos, etc) cada um deve ser compreendido e respeitado; e os professores não são donos da razão, são guias para fazer o estudante compreender o mundo, a ciência, a sociedade e conhecer a si próprio. A responsabilidade é muito grande por isso a Lei 10.639 não basta, é um passo na caminhada, urge a preparação dos professores e não irei ausentar-me dessa turma, mais do que isso é preciso fornecer suportes didáticos para subsidiar as aulas e transversalizar a questão da africanidade.

*Texto-base da palestra proferida no I Fórum Regional para implementação da Lei 10.639/2003, ocorrido na Câmara Municipal de Vereadores de Nossa Senhora da Glória, Sergipe, no dia 25/09/2007. Artigo publicado no manual As relações étnico-raciais: História e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica de Sergipe. Aracaju, SEED/DED/NEDIC, 2011, p. 87-92.
** Thiago Fragata é poeta, historiador e atual Diretor do Museu Histórico de Sergipe/SECUL. E-mail: thiagofragata@gmail.com

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