De São Cristóvão ao Rio Comprido (III)*

Lápide do Capitão-Mor Henrique Luis de Araújo Maciel. Foto: Acervo do IPHAN



Samuel Albuquerque**

Ibarê Dantas, com muito acerto, caracterizou o Engenho Rio Comprido como “um verdadeiro quartel” (Dantas, 2009, p. 40). Sua representação converge com outras mais remotas, a exemplo daquela difundida por Felisbelo Freire ao tratar da fuga do camandante das armas Manuel da Silva Daltro para a “fortaleza” do Rio Comprido.

Diante da sublevação de suas tropas na noite de 1º de novembro de 1824, Daltro “foge para o Rio Comprido (...) e, com o concurso de Henrique Maciel, (...) projeta depor o governo civil no dia 8, e para isso convoca as forças de Itaporanga, à guarda do brigadeiro Domingos Dias Coelho e Mello, as de Laranjeiras, do Rosário, a propósito de um movimento revolucionário republicano, que era preciso sufocar” (Freire, 1891, p. 271 e 272). Sabemos, contudo, que os planos de Daltro e Maciel não surtiram os efeitos esperados e que o camandante das armas viu-se obrigado a pedir desligamento de suas funções, alegando problemas de saúde.

Maria Thetis Nunes editou um ofício dirigido pelo “Capitão-mor do Terço das Ordenanças da cidade de São Cristóvão e dono dos Engenhos Desterro e São José, Henrique Luis de Araújo Maciel”, ao “comandante das Armas da Pronvíncia de Sergipe”, Manuel da Silva Daltro. O documento, localizado pela historiadora no Arquivo Nacional, é revelador da mentalidade de Henrique Luis, um monarquista convicto, temeroso da influência que o secretário Antonio Pereira Rebouças (1798-1880), identificado como republicano e abolicionista, exercia sobre o presidente da província Manuel Fernandes da Silveira (1757-1829). Além disso, demonstrou ser um homem cônscio de sua fidalgia e do lugar de destaque que, por direito, cabia aos aristocratas (Nunes, 1978, 89-90).

Quanto ao segundo engenho mencionado por Nunes, trata-se, certamente, do Engenho São José da Lombada, em Santo Amaro das Brotas. O já citado “Livro de Matrícula dos Engenhos da Capitania da Bahia...”, em suas notas 119 e 243, faz menção ao Lombada, que em princípios do século XIX pertencia a Henrique Luis de Araújo Maciel e, cerca de dez anos depois, já pertencia a Maria Rosa de Araújo e Mello. Infelizmente, não localizei dados que possam confirmar o parentesco entre esses dois proprietários.

Dialogando com estudos do linhagista Ricardo Teles Araújo, Ibarê Dantas destacou vínculos familiares e políticos que aproximaram Henrique Luis dos Dias Coelho, família cujo domínio e influência se espalhavam por toda a zona açucareira da província. Contudo, é muito provável que Antonio Dias Coelho e Mello (1822-1904), futuro Barão da Estância, não tenha conhecido o viúvo de sua tia Francisca, pois Henrique Luis faleceu quando o mesmo contava pouco mais de sete anos.

Baseado, ainda, nos trabalhos de Araújo, Ibarê Dantas informa que a segunda consorte e, certamente, herdeira de Henrique Luis, a senhora Vitorina de Jesus Maria (filha de João Gonçalves Franco e Ana Teresa de Jesus, do Engenho Serra Negra, em Rosário do Catete), contraiu segundas núpcias com o coronel José Rodrigues Dantas e Mello (1790-1852), ex-cunhado, aliado político e colega de Henrique Luis no Conselho do Governo da província (Dantas, 2009, p. 453).

Temos, então, um quebra-cabeça a ser montado, pois, antes de Ibarê, Orlando Vieira Dantas, baseado em dados colhidos com o engenheiro Carlos Cabral Andrade, registrou que o mencionado coronel José Rodrigues foi casado com dona Ana Joaquina de São José e que o mesmo seria irmão do brigadeiro Domingos Dias Coelho e Mello (1782-1874), futuro Barão de Itaporanga, e tio do já mencionado Antonio Dias Coelho e Mello, futuro Barão da Estância (Dantas, 1985, p. 140). Acredito que, após enviuvar da mencionada Ana Joaquina, o  coronel José Rodrigues tenha desposado a também viúva Vitorina de Jesus Maria, que contava pouco mais de trinta anos e, possivelmente, havia herdado o Engenho Rio Comprido do seu primeiro esposo.

Por sua vez, a memória do capitão Henrique Luis encontrou seu último refúgio em um espaço para o qual os holofotes das políticas públicas de preservação dos bens culturais têm se voltado, principalmente após a inscrição da Praça São Francisco na Lista do Patrimônio Mundial pela UNESCO, em 2010.

No Museu de Arte Sacra de São Cristóvão, diante do arco cruzeiro da antiga Capela da Ordem Terceira de São Francisco, entre os altares de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Amparo, está a lápide com a seguinte epígrafe: “Aqui jaz Henrique Luis de Araújo Maciel, capitão-mor efetivo, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, nascido em 24 de junho de 1760 e falecido a 26 de setembro de 1829”.

Do teto do altar-mor, a Rainha dos Anjos, pintura atribuída a José Teófilo de Jesus, parece velar o sono do senhor do Rio Comprido. As seculares imagens do Crucificado e, nos nichos, de São Francisco Xavier, São Francisco de Assis e São Gonçalo do Amarante completam o cenário. (Continua)



*Publicado no Jornal da Cidade, Aracaju, 30 jun./1º jul. 2013, caderno B, p. 7.
**Professor da UFS e presidente do IHGSE. Email: samuel@ihgse.org.br

Sequência de fontes/bibliografia utilizadas:
DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel (1825/1909). O patriarca do Serra Negra e a política oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação, 2009. p. 40, 43-46 e 453.
FREIRE, Felisbello Firmo de Oliveira. Historia de Sergipe (1575-1855). Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1891. p. 271 e 272.
NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe, a partir de 1820. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978. p. 88-90.
SOUTELO, Luiz Fernando Ribeiro. Livro de Matrícula dos Engenhos da Capitania da Bahia para pagamento dos Dízimos Reais administrados pela Junta da Real Fazenda. Aracaju, 198_ (transcrição de registros produzidos entre 1807 e 1820, em documento de título similar, localizado na Seção Histórica do Arquivo Público da Bahia).
DANTAS, Orlando Vieira Dantas. Vida patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980 (Coleção Estudos Brasileiros, v. 47). p. 140.
ANEXO I da Proposição de Inscrição da Praça São Francisco em São Cristóvão/SE na Lista do Patrimônio Mundial. [Aracaju]: Governo de Sergipe/Prefeitura de São Cristóvão/IPHAN, [2010].

De São Cristóvão ao Rio Comprido (II)*

Praça São Francisco, provavelmente no final da década de 1950.  Acervo: IPHAN.

Samuel Albuquerque**

 Seguindo pela estrada que partia de São Cristóvão rumo às Laranjeiras, havíamos estacionado no Engenho Rio Comprido, distante cerca de uma légua do ponto de partida. Aproveitemos, então, para conhecer o seu primitivo dono, o capitão-mor Henrique Luis de Araújo Maciel.

No campo da História, autores como Felisbelo Freire, Carvalho Lima Júnior, Maria Thetis Nunes, Ibarê Dantas e Vanessa Oliveira registraram a atuação do senhor do Rio Comprido na vida política sergipana.

Em 1805, enquanto ouvidor interino da Comarca de Sergipe, Henrique Luis esteve no fronte da reação aos desmandos do sargento-mor Bento José de Oliveira (1748-1808), figura controversa que, desde a década de 1770, capitaneava ações truculentas para impor sua vontade e interesses na capitania.

A leitura de Felisbelo Freire nos ajuda a compreender o contexto no qual Henrique Luis atuou. Segundo o historiador, em princípios do século XIX, “as forças civilizadoras parece que se tornavam impotentes para corrigir o estado político, intelectual e moral daquela sociedade, que com o andar dos tempos, em vez de integrar-se e oferecer uma feição próspera, continuava a apresentar pontos de semelhança com os tempos passados” (Freire, 1891, p. 209).

O olhar positivista de Freire não enxergou progresso na evolução da sociedade sergipana e a figura do sargento-mor Bento José representava bem esse atraso. Malfeitores como ele, enfatizou: “penetram nas cadeias e soltam os presos que lhes podem prestar os ínfimos serviços de instrumentos de vingança; prendem aqueles que não se prestam à tão vil papel; instauram processos, por crimes imaginários, sendo eles mesmos os encarregados de fazerem o interrogatório das testemunhas, peitadas para dizerem o que lhes ensinam; obrigam lavradores a pagarem-lhes altas porcentagens, pelo arrendamento das terras onde habitam, e como resposta a qualquer protesto contra uma tal extorsão, mandam incendiar-lhes as choupanas e derribar-lhes as plantações; entram nos centros populosos armados e acompanhados de sequazes, assassinos, ostentando assim perante as autoridades o prestígio das armas” (Freire, 1891, p. 211).

A representação do temido sargento-mor construída ou divulgada por Freire converge com aquelas legadas por outros historiadores, notadamente Maria Thetis Nunes, que localizou e explorou documentos relativos à Sergipe no Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Imaginemos, então, o prestígio adquirido pelo ouvidor interino Henrique Luis ao ajudar a dar cabo aos desmandos de sargento-mor Bento José. Ele passou a ser admirado e respeitado em todo o Sergipe.

Carvalho Lima Júnior, referindo-se a Bento José como um “sinistro personagem dos tempos coloniais”, anotou: “Tendo dominado pela corrupção e pelo medo os ouvidores, quase todos, do seu tempo, formados e efetivos, não conseguiu fazer o mesmo com ouvidor interino, Henrique Luis de Araújo Maciel, um dos chefes da liga que em Sergipe de então se podia chamar de salvação pública” (Lima Júnior, 1985, p. 74).

Após décadas de desmandos, o “malfeitor fidalgo” foi surpreendido no Engenho Patí (Santo Amaro da Brotas), em fins de 1806. Pouco tempo depois foi remetido de Salvador para Lisboa, onde foi julgado e condenado, permanecendo preso até a morte.
Em 18 de março de 1821, enquanto capitão-mor do Terço das Ordenanças de São Cristóvão, Henrique Luis esteve presente e assinou o “termo de protesto” através do qual o brigadeiro Carlos Cesar Francisco Burlamaqui (1775-1844), acossado pelas autoridades baianas, entregou o governo de Sergipe à Câmara de São Cristóvão, antes de seguir preso para Salvador (Freire, 1891, p. 231 e 232, nota 7). Naquele momento, o senhor do Rio Comprido estava vinculado politicamente ao grupo liderado por José Matheus da Graça Leite Sampaio (?-1829),  capitão-mor do Terço das Ordenanças da Vila de Itabaiana, que era favorável à emancipação de Sergipe e se opunha à facção recolonizadora.

Três anos depois, quando Sergipe já figurava entre as províncias do Império e buscava consolidar sua autonomia em relação à Bahia, Henrique Luis tomou parte da malfadada “conspiração” para depor o presidente Manuel Fernandes da Silveira (1757-1829). Ibarê Dantas, perscrutando documentos do Fundo Padre Aurélio (no Arquivo do IHGSE) e dialogando com outros autores, resumiu bem os fatos: “ao tentar equilibrar as finanças e organizar a administração com um mínimo de funcionalidade, [o presidente da província] encontrou uma grande reação” (Dantas, 2009, p. 43).

Ao descrever o cenário caótico no qual o presidente Manuel Fernandes da Silveira teve de atuar, Felisbelo Freire afirma que o “infrene militarismo” seria o principal obstáculo à boa administração da província. “De 1822 em diante, a guarnição de São Christóvão tendeu a interferir nos negócios públicos. Todas as aclamações, juramentos de constituição foram por ela promovidos”, assinalou (Freire, 1891, p. 260).

Freire também informa que os oficiais tidos como conspiradores foram “presos e enviados para a Bahia, submetidos à conselho de guerra” (Freire, 1891, p. 268). Contudo, ao tratar dos desencontros entre o presidente Silveira e o camandante das armas Manuel da Silva Daltro, o historiador deixa escapar que o senhor do Rio Comprido, antes de ser absolvido pelo Tribunal da Relação do Distrito da Bahia, esteve “fugitivo por algum tempo”. Assim, não temos como afirmar que o influente Henrique Luis esteve encarcerado em uma prisão baiana, aguardando julgamento. O certo é que, “como o prestígio dos implicados era muito forte, terminaram absolvidos e permaneceram influentes” (Dantas, 2009, p. 44).

Digno de nota é a parcialidade com a qual Felisbelo Freire tratou da figura de Henrique Luis, dando pouca atenção aos serviços que o capitão-mor prestou à sociedade e carregando nas tintas para enfatizar suas contradições no campo político. O historiador também desloca para notas de rodapé informações que, no campo das arbitrariedades, aproximam o presidente Silveira dos seus opositores. Em uma dessas notas, por exemplo, registrou: “como co-réu da deposição que quis a guarnição fazer em 29 de abril [de 1824], estava [Henrique Luis de Araújo Maciel] entregue à justiça pública, pelo que não exercia suas funções de membro do conselho para que foi eleito, sendo substituído por um irmão do presidente” (Freire, 1891, p. 271). Hoje trataríamos essa ação como uma clara manifestação de nepotismo.

De toda sorte, a presidência de Manuel Fernandes da Silveira findou pouco antes de completar o seu primeiro ano. Quanto ao capitão-mor Henrique Luis, após ser absolvido pela Relação da Bahia foi reconduzido ao posto de membro e chegou a presidir o Conselho do Governo da Província de Sergipe, sendo bastante prestigiado pelos presidentes que se seguiram. (Continua)

*Publicado no Jornal da Cidade. Aracaju, 22 jun. 2013, Caderno B, p. 6.
**Professor da UFS e Presidente do IHGSE. Email: samuel@ihgse.org.br


Sequência de fontes/bibliografia utilizadas:
FREIRE, Felisbello Firmo de Oliveira. Historia de Sergipe (1575-1855). Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1891. p. 209, 211, 231, 232, 260, 268, 271.
NUNES, Maria Thetis. História de Sergipe, a partir de 1820. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1978. p. 88, 90, 94 e 95.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. p. 130-135 e 307-310.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe provincial I: 1820-1840. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000. p. 106-108, 119, 120, 148 e 157.
LIMA JÚNIOR, Francisco Antonio de Carvalho. Capitães mores de Sergipe – 1590 a 1820. Aracaju: SEGRASE, 1985 (Coleção José Augusto Garcez). p. 56, 58-61, 63, 64, 66-68, 73-76.
DANTAS, Ibarê. Leandro Ribeiro de Siqueira Maciel (1825/1909). O patriarca do Serra Negra e a política oitocentista em Sergipe. Aracaju: Criação, 2009. p. 24, 39, 40, 43-46.
GUARANÁ, Manoel Armindo Cordeiro. Brigadeiro Manoel Fernandes da Silveira: 1º Presidente de Sergipe. Revista do IHGSE, Aracaju, v. 1, n. 2, p. 37-41, 1913.
GUARANÁ, Manoel Armindo Cordeiro. Dicionário bio-bibliográphico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti & C, 1925. p. 208.

OLIVEIRA, Vanessa dos Santos. Conflitos internos em Sergipe: a instabilidade política e a consolidação da autonomia (1824). Revista do IHGSE, n. 34, p. 75-101, 2005.

De São Cristóvão ao Rio Comprido (I)

Vista da Igreja N. Sra. da Vitória, em São Cristóvão. [déc. 1960]. Acervo IPHAN/SE


Por Samuel Albuquerque*

O estudo do cotidiano da nossa antiga açucarocracia tem me levado a caminhos estranhos à maioria dos sergipanos. Exemplo disso são as estradas percorridas pela família do Barão da Estância (1822-1904) nos idos do século XIX, quando deixavam o Engenho Escurial, onde viviam, e rumavam para o Engenho São Joaquim, propriedade do coronel José de Faro Rollemberg (1845-1889). O Escurial, na margem esquerda do Vaza-Barris, em São Cristóvão, e o São Joaquim, na margem esquerda do Sergipe, entre Divina Pastora e Maruim, distavam cerca de 10 léguas um do outro e se comunicavam, como veremos, através de artérias que ligavam importantes cidades e vilas da província.

Documentos oitocentistas, como a carta corográfica organizada pelo engenheiro João Bloem, indicam as estradas que, possivelmente, foram percorridas pelos viajantes do Escurial. O cotejo desses testemunhos com as ortofotocartas dos municípios litorâneos e com os mapas das rodovias que cortam Sergipe revelam itinerários que se assemelham àqueles descritos no texto de memórias de Aurélia Dias Rollemberg (1863-1952), filha do Barão da Estância, cunhada e hóspede frequente do coronel José de Faro. Além disso, entre os dias 4 e 7 de maio de 2013, refiz o percurso sugerido pelo controle das fontes, enfrentando os percalços de “caminhos quase esquecidos”, porém repletos de elementos que nos conectam ao passado.

O trânsito entre os engenhos Escurial e São Joaquim se intensificou a partir de 1869, ano em que Amélia Dias Dantas e Mello (1849-1888), filha primogênita do Barão da Estância, foi desposada pelo jovem viúvo José de Faro Rollemberg. Daí por diante, as duas propriedades estariam unidas por laços familiares e a comunicação entre elas seria feita, num primeiro momento, através da estrada que, desde a década de 1840, ligava as cidades de São Cristóvão e Laranjeiras.

Tomemos, então, como ponto de partida a Igreja Nossa Senhora da Vitória, na Praça da Matriz de São Cristóvão, onde, entre 1855 e 1882, pontificava o vigário José Gonçalves Barroso (1821-1882), amigo próximo e correligionário do Barão da Estância.

Rumando para norte e desviando do barrocão José Aleixo (precipício resultante de deslizamentos de terra nas encostas do Monte Una), penetrava-se a viela que seguia até a Ladeira de São Francisco (também conhecida como Ladeira do Açougue), de onde se descortinava a bela paisagem do estuário do Paramopama, com seus densos manguezais serpenteados por ribeiros e seus “alagados soberbos” tomados pelas salinas.

Por uma alameda de humildes casebres, a ladeira descia cerca de 90 braças até a várzea, região dominada pela praça e casa do mercado, onde a cidade crescia desordenada e pobre. O memorialista Serafim Santiago, em seu belo “Annuario Christovense”, descreveu a vistosa casa do mercado como sendo “uma grande quadra cercada com muro e pilastra com grade de ferro, havendo no fundo, do lado da maré, onde se faz[ia] o desembarque das mercadorias vindas das praias, um grande portão também de ferro, e um nas mesmas condições na entrada (...). Logo ao lado do fundo, um grande saguão ou barracão coberto convenientemente (...). Toda a extensão era calçada” (Santiago, 2009, p. 329).

O cotidiano daquela zona comercial, que fervilha nas tardes e noites de sexta-feira, também foi descrito por Santiago. Segundo ele, “as famílias ali compareciam nas sextas-feiras, a fim de apreciar o começo da feira e comprar frutas e beijus e ouvirem as bem executadas peças de músicas pelo Corpo de Polícia, que ali comparecia nas sextas-feiras para retreta, (...) sob a batuta no notável compositor e mestre da referida banda, o cristovense José da Anunciação Pereira Leite, ali conhecido como José Bochecha e que se orgulhava em dizer: ‘música que eu escrevo, os moleques não assobiam pelas ruas’” (Santiago, 2009, p. 329).

Ao final da rua conhecida como da Feira Velha, nas imediações da Praça do Mercado, uma sólida ponte de pedra e cal sobre o Paramopama dava acesso a duas estradas. A primeira, contígua à ponte, era mais antiga e rumava para o oeste. A segunda surgiu como uma espécie de desvio que, rumando para norte, levava a florescente Aracaju, capital da província a partir de meados da década de 1850.
Seguindo para oeste, a estrada cortava planícies e terraços fluviomarinhos. Inicialmente, passava pelas baixadas do Merem, trecho bastante movimentado pelo concorrido Porto das Salinas e emoldurado pelo outeiro do sítio Merem de Cima (hoje conhecido como Alto da Divinéia). Antes de transpor o braço principal do Paramopama (a cerca de meia légua do ponto de partida), encontrava afluentes que rumavam mansos para sul.

Caminhos de acesso a engenhos de açúcar da região, como o Gameleira, convergiam para a estrada principal, tornando-a ainda mais devassada. Ao longo do percurso, era comum aos viajantes cruzar com pescadores e marisqueiras, que usufruíam das riquezas da “mãe maré”, além de muitos carreiros, transportando suas cargas de açúcar, sal, lenha e madeira.

Pouco mais de uma légua após o seu início, quando salinas e capoeiras já haviam ficado para trás, a estrada alcançava os canaviais do Engenho Rio Comprido, cuja sede ficava na margem esquerda do curso d’água que dava nome à propriedade e que, assim como o Paramopama, desaguava no estuário do Vaza-Barris. Antes disso, os olhares dos viajantes eram atraídos pela majestosa Capela Nossa Senhora do Desterro, erguida no alto de uma colina, ao norte da sede do engenho.

O Rio Comprido, também conhecido como Desterro, era uma das unidades açucareiras mais antigas do Baixo Vaza-Barris e, já em princípios do século XIX, figurava no “Livro de Matrícula dos Engenhos da Capitania da Bahia para pagamento dos Dízimos Reais administrados pela Junta da Real Fazenda”, documento preservado na Seção Histórica do Arquivo Público do Estado da Bahia. A cópia manuscrita que possuo e que reproduz parcialmente o referido documento foi feita pelo confrade Luiz Fernando Ribeiro Soutelo na década de 1980, tomando como referência uma cópia xerográfica do original, oriunda do arquivo particular da historiadora Maria Thetis Nunes. Segundo a nota 118 do referido documento, o “Desterro” pertencia a Henrique Luis de Araújo Maciel, um dos homens mais poderosos de Sergipe no primeiro quartel do século XIX. É dele que iremos tratar adiante. (continua)

*Publicado no JORNAL DA CIDADE, Aracaju, 16 jun. 2013, caderno B, p. 7. Autor " Dedico os textos desta série a Aurélia Dias Rollemberg, flor que desabrochou no vale do Vaza-Barris em 16 de junho de 1863, há exatos 150 anos".



**Professor da UFS e presidente do IHGSE. Email: samuel@ihgse.org.br 

BIBLIOGRAFIA 
ROLLEMBERG, Aurélia Dias. [Texto de memórias]. Aracaju, [entre 1927 e 1952]. In: ALBUQUERQUE, Samuel Barros de Medeiros. Memórias de Dona Sinhá. Aracaju: Typografia Editorial, 2005. p. 49-123;
BLOEM, João. Carta corographica para a divisão das comarcas, termos e municipios da Provincia de Sergipe Del Rey. [Rio de Janeiro]: Lith. do Archivo Militar, 1844. 1 mapa; 75,4 x 57,2 cm (Biblioteca Nacional, ARC. 027, 13, 037 ex. 6 Cartografia);
BASE CARTOGRÁFICA dos Municípios Litorâneos de Sergipe. [Aracaju]: PRODETUR-NE II/Ministério do Turismo, 2004 [ortofotocartas 691-778, 684-778, 684-783, 684-788];
ATLAS DIGITAL sobre recursos hídricos de Sergipe. Versão 2012-9. Aracaju: SRH/SEMARH/Governo de Sergipe, 2012. 1 DVD (camada Infraestrutura e subcamadas Rodovia Estadual e Rodovia Federal, dentre outras);
REGISTRO DO CASAMENTO de José de Faro Rolemberg com Dona Amelia Dias Dantas e Mello. Itaporanga d’Ajuda, 1869. In: Livro de registro de casamentos – 1845/1877, número 1258. p. 130 (reverso). Arquivo da Igreja Matriz da Paróquia Nossa Senhora d’Ajuda, Itaporanga/SE;
SILVA, Clodomir de Souza. Coronel José de Faro. In: _____. Album de Sergipe, 1820-1920. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 1920. p. 317 e 319;
GUARANÁ, Manoel Armindo Cordeiro. Dicionário bio-bibliográphico sergipano. Rio de Janeiro: Pongetti & C, 1925. p. 167-168;
SANTIAGO, Serafim. Annuario Christovense ou Cidade de São Christovão. São Cristóvão: Editora UFS, 2009. p. 74, 77-79, 108, 109, 117, 122, 129, 135, 136, 272-276, 232, 233, 317, 328, 329, 335.
TELLES, M. P. Oliveira. Sergipenses (Escriptos Diversos). Aracaju: Typografia d’O Estado de Sergipe, 1903. p. 108.
ANEXO I da Proposição de Inscrição da Praça São Francisco em São Cristóvão/SE na Lista do Patrimônio Mundial. [Aracaju]: Governo de Sergipe/Prefeitura de São Cristóvão/IPHAN, [2010].
SOUTELO, Luiz Fernando Ribeiro. Livro de Matrícula dos Engenhos da Capitania da Bahia para pagamento dos Dízimos Reais administrados pela Junta da Real Fazenda. Aracaju, 198_ (transcrição de registros produzidos entre 1807 e 1820, em documento de título similar, localizado na Seção Histórica do Arquivo Público da Bahia).

ARMINDO PEREIRA: CONTISTA E ROMANCISTA INÉDITO EM SERGIPE

POR GILFRANCISCO* - gilfrancisco.santos@gmail.com Ficcionista sergipano, Armindo Pereira (1922-2001) nasceu com a literatura nas veias, vá...